sexta-feira, 16 de outubro de 2015

A Casa do Senhor Malaparte


aqui confessámos o nosso fascínio por casas. Gostamos de tentar adivinhar-lhes a intimidade, os mistérios que  podem esconder, as infinitas histórias ainda por contar. Claro que há casas mais encantadas do que outras. E há A Casa do Senhor Malaparte.
Da memória de muitos farão parte ainda hoje as imagens que Brigitte Bardot ali protagonizou quando, nos anos 60, o realizador francês Jean-Luc Godard elegeu o paradisíaco lugar para cenário do filme Le Mépris. Mas a história desta casa, tão controversa quanto a do seu proprietário, o escritor e jornalista Curzio Malaparte, começa muito antes.


Envolta em polémica logo à nascença, por contrariar todas as normas do ordenamento local, a casa acabaria por ser construída num idílico promontório situado na parte mais oriental da Ilha de Capri, em Itália. Malaparte queria uma casa à sua semelhança, inacessível e solitária.
 Malaparte ama-a verdadeiramente. É uma casa como ele. Só.

 
Mas ainda a construção mal começara e já a polémica se reacendia, dando origem a um espinhoso quebra-cabeça que ainda hoje perdura no universo da arquitectura. Fazendo jus ao seu mau feitio, Malaparte cedo correu com Adalberto Libera, arquitecto de conhecidas ligações ao poder, tomando nas mãos as rédeas da construção da casa. Para a executar,  contou apenas com a ajuda de um pedreiro local.

Como tinha mau feitio,
depressa dispensou o arquitecto Adalberto
e a casa foi crescendo, sem ordem nem projecto,
com os materiais que ali havia.

Rochas, mar, horizonte, solidão.


Com texto de Joana Couceiro e ilustrações de Mariana Rio, o primeiro livro da colecção "Casas com nome" publicada pela Circo de Ideias, uma editora especializada em arquitectura, conta a história da sua construção, das desavenças entre escritor e arquitecto,  guiando-nos através de um minucioso roteiro pela casa de Malaparte. O objectivo da colecção, dirigida também a crianças, é reunir um conjunto de casas exemplares do século XX revisitadas através de uma dimensão literária e imagética.


De formato grande, como a própria temática exige, e com design gráfico da autoria do Studio Dobra, nada parece ter sido deixado ao acaso neste livro evocativo de uma das casas mais estranhas, mas também mais surpreendentes do século passado. Um texto bem estruturado e algo poético conta-nos as histórias  e conduz-nos casa a dentro numa visita guiada pelos aposentos de Malaparte.

No seu quarto havia ainda uma outra porta para abrir.
Por trás, com os olhos postos na linha que separa o céu do mar
esconde-se um lugar.

É o lugar dos livros.

Livros por todo o lado, livros nas estantes, livros no mar.
Na última de todas as portas,
o seu lugar.

Mar a dentro.


Numa cadência ritmada, a cada página de texto segue-se uma dupla página por onde se espraiam as magníficas ilustrações de Mariana Rio. Utilizando uma paleta sóbria, onde  predominam o azul, o preto e o cinza, e onde, à imagem do real, o vermelho se  evidencia, apetece dizer que a ilustradora roça a perfeição na interpretação que faz do espírito malapartiano. 


Kurt Erich Sükert era o verdadeiro nome de Malaparte (pseudónimo escolhido por oposição a Bonaparte) que começou por ser militante do partido fascista e morreu convertido ao comunismo. Mal amado pelo povo, odiado pelas classes dominantes, várias vezes preso, dele se poderá dizer que não agradou nem a gregos nem a troianos. Foi autor de vários livros, de que se destacam Kaputt e A Pele, relatos frios e cruéis resultantes da sua vivência directa da II Guerra Mundial e de uma Europa pós-guerra. Considerados por uns obras odiosas e por outros obras-primas da literatura, colheram a aversão tanto de italianos, como de alemães e americanos.


Uma vida e uma casa controversas aqui desenhadas com a mesma naturalidade, fina ironia e até alguma frieza com que parecem ter sido vividas. O trabalho de Mariana Rio transporta-nos para o dia a dia do Senhor Malaparte na casa. Ao mesmo tempo que nos permite a partilha de estados de alma e de emoções, da rara beleza da paisagem  e até de uma certa ordem caótica. A solidão e a imensidão do azul prendem-nos até ao final do livro.


Quando, há uns anos estivemos em Capri, não conseguimos chegar perto da casa de Malaparte, por várias razões. Inacessível? Sim. Mas o mesmo não podemos dizer desta Casa do Senhor Malaparte, que grandes e pequenos devem visitar. Pela nossa parte, aguardamos com grande expectativa o segundo volume da colecção. Somos fascinados por casas!

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